27.6.10

O ciclo

@Ana


Gosto do meu silêncio.
Gosto de o sentir e declarar essa paz.
Assim, em simplicidade, observo o movimento alheio.
Vejo que a vida se concretiza num figo maduro, nas mãos que se afundam na areia, na Maria em feliz correria até ao mar. 

Filmo sentada na casaca de uma árvore. Não há excedente na folia da minha mente.
Se derreto, das lágrimas nascem novos rebentos de ilusão e agradeço.

Suspirando chego sem partir. 

21.6.10

As estórias do Mestre

@Ana


Se olhares para as minhas mãos verás imperfeições.
As linhas ásperas rodeiam a carne, submissa às ordens do tempo.
Agora viajam mais devagar os dedos pelo graminho. O martelo é mais leve, são penas o que cravo na madeira. Reconheço os sinais deixados na face da mão por aquela lixa que tanto usei. 
E as unhas? Oh!... Fim da luta onde nascia o feitio dos balaústres. Coitadas, em sacrifício, geladas, cediam ao capricho das máquinas. 

Tenho rugas. Sim.

Uma destas noites sentamo-nos, enquanto o lume viver, e contar-te-ei as minhas histórias.     
  

20.6.10

Dispersão

@Ana


A preguiça ataca a minha mente esquelética. Recuo...
Em meu redor as ideias passeiam-se pelo vazio, a ténue camada fértil da imaginação esvai-se com a comodidade das horas.  

Como levar adiante a semente da vontade?

Volto a casa e prendo as palavras entre as paredes. Assim não fujo, assim não desisto.
Antecipo: pó e humidade nos cadernos, folhas perdidas nos degraus da escada, a letra segura raptada para os cantos do esquecimento. 

Não adio mais.


Faço das palavras o meu pão.   

16.6.10

Os homens e os pássaros

@Ana


Quando os homens se calam os pássaros regressam à praia.
Começa lentamente o seu ritual, uma pequena fábula a quem de longe observa. 

Liberta o mar o cansaço soluçando ondas contra as rochas. As gaivotas tropeçam nos socalcos, maldizendo a areia e a sua vã generosidade.

Acho que os homens vão para perto do mar para renunciarem aí aos seus pecados, adormecidos pela névoa matinal das rotinas. Ficam até ao anoitecer depositando as suas partículas junto de outras partículas. Então os pássaros vêm e em passos vagarosos guardam o que ficou dos sonhos das crianças.

Será essa a poesia que amanhã cairá do céu. Gotas de alegria e de sal, um presente aos homens de olhos vencidos e de coração mudo.   

12.6.10

Agora

@Ana


Há quem tenha medo de perder o passado. Há quem guarde memórias acumuladas em datas, fotografias e objectos.
Eu tenho medo de perder o presente. De perder a tinta que dança nas minhas veias e me faz sentir paixão e devaneio perante a vida. Hoje vi os pássaros e, sem os invejar, dancei uma vénia em seu redor. Reconheci que as folhas caem sem dor e que as flores se escondem do amor que não chega.
Agradeço a partilha e o céu que não se acaba sobre a minha sombra. Não espero repetir.
Desejo acordar outra, outra e outra vez .

10.6.10

Pudor

@Ana


Isolo a angústia, separo-a em minúsculas ilhas que empurro para fora de mim. Resistem, teimosas, como pó acumulado nos pés.
É a recordação. Lugares que recuso deixar, paixões que me perseguem à muito, à tanto que se acaba em nada. 
Perdi-me em ti, viagem do corpo, melancolia da alma.
Renuncio ao pudor, vou... Sei que vou.
  

9.6.10

A profissão

@Ana


Vem ser a meu lado, como as espigas que se acariciam nas planícies esquecidas pelos homens.
Vamos descansar no sopro que percorre o tronco das oliveiras. 
Vem desejar o céu a cantar nos nossos lábios.
Vamos ser pedra vagueando na lavoura.


Eu e tu, indígenas na terra do amor. 


8.6.10

Descobrir

@Ana


Fiquei a pensar na tua pergunta.
Fiquei amarrada a becos com respostas inseguras.   
Deixei o perfume do campo paralisar-me e fui pela preguiça do sol em busca da razão.
Fui sem corpo ser o teu corpo.
Fui ser cega na tua força.
Fui ser bailarina no teu rosto.
À deriva respondi... Sou a euforia!

4.6.10

O desejo

@Ana


Procuro algo mais do que a insónia na espinha dos dias.
Procuro saber em que lugar se esconde o espaço do nós, esse plural nunca concretizado.
Examino as esquinas do tempo onde passei, onde ficaste, onde o tempo se negou a ser mais tempo para os dois.
Sou uma jangada de insatisfação. No meu altar espero a chegada do consolo.
Por um momento fui rainha no teu país. Obedeci ao desejo e cantei...
Em segredo, sempre que o silêncio engole o ar, eu canto... Eu amo. 


3.6.10

O meridiano

@Ana


Informo ao mar que será meu leito.
Para trás a cinza, fadiga dos homens que não partem.
Preparo-me... Escondo no bolso algumas folhas e uma velhinha caneta.
Deixo a enxada a pernoitar numa nuvem e peço-lhe que não vá embora. 
Depois do nada, que é a sedução dos olhos, voltarei.
O corpo ausente repara enfim que a vida acontece. 


2.6.10

A estreia



@Ana


A manhã chega sem convite e entra. 
No murmúrio das estrelas declara-se a sua estreia.
A noite senta-se ao seu colo enternecida de paixão.
Amanhã será outra manhã imergente do escuro e da cor.
O esboço de uma lágrima de luz principiou a viagem.
Sem idioma ou razão, ela escreve.
Derrama o mundo que traz dentro de si em palavras, na quente tortura de um lápis.
Irá repetir-se, voar e desfalecer. Será fome e sede nas linhas onde caminha.
Afastam-se os lençóis, levanta-se a canção, a menina mulher é árvore.

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